Não é preciso ser um perito em Higiene Urbana para saber que, em Lisboa, existe um problema na recolha de resíduos urbanos: É comum encontrar sacos de lixo encostados a caldeiras de árvore ou, simplesmente, abandonados no passeio, e as ecoilhas enterradas estão frequentemente rodeadas de lixo e resíduos diversos. As causas do fenómeno são múltiplas e não cabem nesta análise e propostas mas a solução poderia – e deveria – passar pelo maior participação dos cidadãos na gestão dos resíduos urbanos.

A este respeito a “Rede Nacional de Oleões” operada pela empresa Hardlevel poderia dar algumas pistas nesta direcção: a rede estava – quando começámos a escrever estas linhas – online em https://www.reno.pt/ – mas, subitamente, no dia 31 de agosto ficou inacessível. Esta empresa e rede de oleões não são as únicas a funcionarem no país, como se comprova analisando o Portal Base da contratação pública.

A reciclagem de óleos alimentares usados é essencial para proteger o meio ambiente, evitando a poluição da água e do solo, além de preservar a infraestrutura urbana ao prevenir entupimentos nas redes de esgoto. Também contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa, uma vez que o óleo reciclado pode ser transformado em biocombustível. Além disso, promove a economia circular, permitindo a criação de novos produtos e incentivando práticas mais sustentáveis. Portugal consome, por ano, entre 206 a 258 milhões de litros de óleo alimentar. Do óleo recolhido, cerca de 80% a 90% pode ser convertido em biodiesel através de processos de transesterificação (o método mais comum).

No portal base encontrámos 77 contratos públicos desde 2019 com os municípios de Silves, Alcoutim, Santo Tirso, Pampilhosa da Serra, Castelo de Paiva, Oleiros, Vila Velha de Ródão, Seia, Lourinhã, Setúbal, Seixal, Vila Franca de Xira, Alcobaça, Tomar, Ourém, Amadora, Figueira da Foz, Sertã, Estarreja, Marvão, Idanha-a-nova, Baião, Óbidos, Arouca, Moita, Vila Nova da Barquinha, Albergaria-a-velha, Murtosa, Montemor-o-Novo, Rio Maior, Mafra, Ovar, Alijó, Constância, Proença-a-Nova, Alenquer, Azambuja, Cadaval, Oliveira do Bairro, Borba, Sernancelhe, Torres Novas, Vila Pouca de Aguiar, Armamar, Portalegre, Silves, Entroncamento e outros. De permeio está Lisboa.

Desde Junho que se começaram a multiplicar em Lisboa os relatos de “oleões” que estavam cheios e que o óleo alimentar não era recolhido: havia óleo no piso em torno dos contentores (a responsabilidade pela limpeza em torno cabe, em tese, às juntas de freguesia locais). Com efeito, as “peças” de alguns destes contratos (as de Lisboa não estão acessíveis) incluem, para a hardlevel a obrigação de “Instalação, manutenção e higienização dos equipamentos” pelo que os casos em que estes contentores estão cobertos por dejectos de pombos (caso do situado na Praça Paiva Couceiro) são da responsabilidade da empresa. Já os casos em que o óleo transbordou e rodeia a calçada, criando problemas de contaminação das águas pluviais e risco para peões e transeuntes, parecem competir às Juntas de Freguesia em Lisboa ou às Câmaras Municipais nos outros concelhos do país em que o mesmo modelo de delegação de competências não existiu.

Os contratos que analisámos (e que estão na peças dos contratos no Base) prevêem também que “Os oleões deverão estar equipados com sistema de sensorização passível de conectar-se com a aplicação móvel, a qual deverá ser disponibilizada pela entidade adjudicatária para dispositivos Android e IoS – e cujo acesso e utilização pelo cidadão não acarrete qualquer custo (fornecendo local para download da respetiva aplicação móvel de interação)“. Mas quando o site estava online todos os Oleões em Lisboa estavam em agosto de 2024 a 100% disponíveis mesmo quando estavam visivelmente cheios e a transbordar. Tudo indica que ou os sensores não estavam a recolher e enviar dados ou que a plataforma que os devia receber, processar e integrar no mapa não o estava a fazer. Isto em Lisboa porque o site ficou indisponível antes que pudéssemos fazer o mesmo tipo de análise noutros concelhos onde a empresa também tem contratos com autarquias locais.

Os contratos também previam o “Acesso a plataforma de controlo de gestão com dados em tempo real, como, localização dos equipamentos, histórico de quantitativos por oleão, nível de enchimento, contabilização de depósitos, contabilização de CO2 evitado, percentagem e evidência da regeneração da fonte de alimentação, e-gars emitidas, médias de produção, criação de campanhas para o público em geral ou grupos em específico“. Estas excelentes funcionalidades são precisamente aquilo que precisamos para criar o elevado nível de envolvimento e participação dos cidadãos nas questões da qualidade e da higiene urbana nas suas autarquias. Contudo, não pareciam estar disponíveis no site quando este estava no ar.

Ao mesmo tempo que o site da www.reno.pt ficou indisponível registámos que uma série muito alargada de Oleões de Lisboa foram recolhidos: Santa Maria Maior, Misericórdia, Alvalade, Avenidas Novas e Areeiro. No Beato e Arroios ainda ficaram alguns por recolher e a transbordar.

O site ainda pode ser visto (mas apenas na página de login) em 

https://arquivo.pt/wayback/20230212052531/https://reno.pt:80/Account/Login  Sendo que o mapa da RENO surgia em https://www.reno.pt/mapa Também existe o Mapa da Planetiers mas está muito desactualizado (embora inclua – o que é muito útil – os oleões dentro de supermercados):

Na plataforma de Dados Abertos da CML temos, contudo, acesso a uma lista que parece extensa e actualizada de todos os Oleões de Lisboa: https://geodados-cml.hub.arcgis.com/datasets/e4af86f9aabe44a1a036a2c677f2755b 

e que nos permite ver que esta excelente iniciativa (que data de 2020) tem uma boa cobertura. Visitando alguns destes “Oleões” constata-se também que os contentores têm boas dimensões, são bem visíveis, de fácil acesso, práticos e estanques (os óleos que escorreram no passeio e que rodeiam praticamente todos são provavelmente o resultado do enchimento e de as pessoas os colocarem ao lado durante as semanas/meses que estiveram sem aparente recolha em Lisboa).

Analisando os locais de Oleões no mapa de Dados Abertos encontramos nos locais em que o carro da Google passou vários a transbordar em Julho de 2024 mas não em 2021, 2022 e 2023 (e não em Junho de 2024: quando o carro da Google aqui passou neste mês). É como se as recolhas tivessem sido suspensas em Julho, parte de Junho e parte de Agosto.

Esta rede nasceu em 2017 e tem actualmente mais de 2.000 Oleões Smart S + instalados em mais de 100 municípios. Segundo a empresa “Os Oleões Smart S+ concebidos pela Hardlevel estão equipados com tecnologia IoT – Internet of Things; por um lado um sistema de sensorização que permite saber em tempo real o estado de enchimento do equipamentos, por outro, interagir através de uma App (RENO®) com o munícipe permitindo-lhe assim contabilizar os seus depósitos de Óleo Alimentar Usado e habilitar-se a prémios no decurso das campanhas e sorteios que se vão realizando em parceria entre a Hardlevel e os seus parceiros.”

No site – quando estava no ar – após registo era efectivamente possível aceder ao link para prémios e campanhas de sorteios (um mecanismo importante para atrair e manter utilizadores na rede).

Em Lisboa existe apenas um contrato público para “Disponibilização, instalação, higienização, manutenção de equipamentos, recolha e encaminhamento a destino final adequado de óleos alimentares usados provenientes do setor doméstico (OAU’s)” por “Consulta Prévia” para “Aquisição de serviços” de “Serviços relativos a resíduos e lixos” à “Hardlevel – Energias Renováveis, Lda (507938348)”. O contrato surge a 0 euros (?) e foi assinado a 29-03-2021 tendo a validade 730 dias, o que significa que terminou em 1 de fevereiro de 2023, sendo este prazo de 2 anos e meio comum noutros contratos da empresa com outros municípios. Contudo, ao contrário de outros, o contrato de Lisboa não mostra as “peças do contrato” o que traria informações importantes para uma análise. Por outro lado, os dados publicados indicam que o contrato terminou no ano passado e que ainda não foi renovado (se a Hardlevel recolheu óleo em Agosto fê-lo ao abrigo de que contrato?). É certo que o prazo para a publicação de um contrato público no portal BASE da contratação pública é de 30 dias a contar da data da sua celebração. Isto significa que Lisboa esteve sob tipo de manutenção e recolha de óleos alimentares usados entre fevereiro de 2023 e agosto de 2024? O facto de muitos “Oleões” (mas não todos) terem começado a ser recolhidos em finais de agosto significa que foi assinado um segundo contrato o qual, a 4 de setembro (têm um mês para o publicar) ainda não surgia no Base e que foi assinado apenas depois de termos questionado a Hardlevel a 25 de agosto?

O contrato a zero euros é incomum mas não é raro noutros tipos de contratos públicos (a compensação pode vir de outras formas não financeiras mas perfeitamente razoáveis) e sabe-se que o processamento de óleos é um processo rentável para quem o executa.

Esta aparente paragem da rede criou desilusão e desincentiva o uso destes interessantes equipamentos. Se a percepção de inutilidade de reciclagem de óleos alimentares se instalar será difícil que os cidadãos tenham um papel participativo neste processo de reciclagem de óleos alimentares e a imagem de abandono e de acumulação de óleos em garrafas, garrafões e plásticos em torno das ecoilhas degrada o espaço público e induz uma imagem de desleixo e cria desligamento dos cidadãos para com a gestão dos resíduos urbanos que têm efeitos noutros vectores da vida urbana (efeito “janelas partidas”).

Acreditamos que a crise de higiene urbana em Lisboa (e noutras cidades do país), marcada pela acumulação de lixo em torno das ecoilhas e sacos de lixo abandonados nas ruas, pode ser enfrentada com propostas que incentivem a participação activa dos cidadãos:

1. Campanhas de Sensibilização e Educação Comunitária:

a. Promover campanhas de sensibilização sobre a importância da correcta separação e deposição do lixo, destacando as consequências ambientais e de saúde pública do descarte inadequado.

b. Organizar eventos em escolas, associações de moradores e espaços públicos para educar os cidadãos sobre reciclagem, compostagem e práticas de redução de lixo.

c. Estabelecer programas em que cidadãos se possam voluntariar para ajudar a manter as suas comunidades limpas, criando, p.ex., grupos de limpeza comunitária ou “embaixadores da higiene urbana”.

2. Incentivos e Recompensas:

a. Introduzir um sistema de recompensas para os bairros ou indivíduos que apresentem as melhores práticas de gestão de resíduos, tais como descontos em taxas municipais ou prémios simbólicos. Este sistema existia/existe na http://www.reno.pt (e era visível quando o site estava online) e

b. Oferecer trocas de resíduos recicláveis por benefícios, tais como vales de compra ou bilhetes para eventos culturais. Em tempos a Freguesia de Campolide teve um programa de incentivo ao Comércio Local através de uma Moeda Local que era inserida na comunidade trocando sacos de resíduos por esta unidade monetária.

3. Tecnologia e Participação Digital:

a. Em Lisboa já existe a aplicação móvel “Na Minha Rua”. A aplicação não é isenta de problemas mas já pode ser usada para reportar rapidamente problemas de lixo nas ruas ou ecoilhas, com a possibilidade de incluir fotos e localização. Os dados aqui reportados podem ser usados para o sistema de prémios e incentivos mencionado no ponto anterior.

b. Criar um portal com total transparência sobre os dados de recolha e reciclagem, por freguesia e a nível nacional, acessível por todos e atualizado mensalmente, com todos os dados sobre as actividades de higiene urbana 

4. Adopção de Áreas Públicas:

a. Incentivar empresas, ONGs e grupos de moradores a “adoptar” ecoilhas ou áreas públicas, responsabilizando-se pela manutenção e limpeza regular dessas áreas.

b. Estabelecer parcerias com escolas para que os estudantes adoptem uma ecoilha ou espaço público, realizando actividades de limpeza e manutenção como parte do currículo educativo.

5. Melhoria das Infraestruturas:

a. Investir na melhoria das ecoilhas, como aumento da capacidade de armazenamento e manutenção mais frequente, e assegurar que estejam localizadas em locais acessíveis e adequados.

b. Criar mais ecoilhas menores, distribuídas por toda a cidade, para facilitar o descarte adequado e reduzir a pressão sobre os pontos existentes.

c. Que seja contratado um serviço de auditoria à higiene das ruas, com verificações diárias, e os dados disponíveis por freguesia. Tal serviço mediria a limpeza das ruas, de forma independente, e publicaria os dados em tempo real por freguesia.

6. Participação Cidadã na Fiscalização:

a. Estabelecer um programa onde voluntários possam auxiliar as autoridades na monitorização do descarte irregular de lixo, reportando infracções e sugerindo melhorias ao sistema.

b. Criar conselhos comunitários de higiene urbana, onde moradores possam discutir regularmente com representantes municipais e das juntas de freguesia as questões de lixo e sugerir soluções locais.

7. Eventos de Limpeza Comunitária:

a. Organizar dias dedicados à limpeza de bairros, envolvendo escolas, empresas, associações de moradores e cidadãos em geral.

b. Promover competições amigáveis entre bairros para ver quem consegue manter a sua área mais limpa durante um determinado período, com prémios para os vencedores.

Estas propostas visam promover uma cultura de responsabilidade partilhada e acção coletiva, onde cada cidadão se possa sentir uma parte activa e participativa na manutenção da higiene urbana e do espaço público que, ao fim e ao cabo, é de todos.

Uma resposta a “A oportunidade perdida dos Oleões de Lisboa e algumas propostas participativas para o problema dos resíduos urbanos”

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“A essência da democracia participativa é a participação significativa na tomada de decisões e na formulação de políticas.”
Carole Pateman
“Participação e Teoria Democrática” (1970)